Na primeira viagem de avião após o início da crise provocada pela COVID, fiquei positivamente surpreso com os procedimentos de desembarque adotados. Ao invés de todos se levantarem simultaneamente e ficarem espremidos naquele estreito corredor entre as cadeiras, foi orientado que apenas a primeira fileira se levantasse, pegasse seus pertences e desembarcasse, para só então prosseguir com a fileira seguinte, e assim de forma sucessiva, até o completo esvaziamento da aeronave. Confesso que, não sei por qual razão, sempre fui daqueles que levantava ansioso, ficava me apertando no minúsculo espaço, nem sempre totalmente ereto. A nova perspectiva, bem mais agradável aos olhos e muito mais razoável para os passageiros, fez-me refletir sobre o imenso valor de se estabelecer a ordem.
Como os pensamentos nunca ficam soltos, conectei o evento ao mundo corporativo, mais especificamente na convivência pouco conhecida, mas extremamente necessária, entre caos e ordem. Li sobre o tema pela primeira vez no livro “O Nascimento da Era Caórdica”, de Dee Hock, fundador e ex-CEO da Visa. O livro, dentro outros assuntos relevantes, retrata o aumento significativo da importância das organizações no mundo e uma paralela e indesejada diminuição da felicidade dos seus colaboradores. Ao criar a Visa, Dee Hock se desafiou a encontrar um novo modelo de gestão que permitisse a plenitude do sucesso empresarial aliado ao das pessoas envolvidas. Quebrou o modelo de comando e controle, gerências intermediárias e várias outros “vícios” históricos das grandes corporações. Basta que o leitor olhe para sua carteira, onde vai com alguma certeza encontrar um cartão com a bandeira por ele criada, para constatar a vitória inconteste da marca. A leitura foi a principal inspiração conceitual para a criação da minha empresa de tecnologia.
A ordem que encontrei no desembarque é extraordinária para algumas atividades empresariais, mas é extremamente pobre para outras, em particular, para o processo criativo. A inovação requer interações mais livres, convivência entre pensamentos diferentes e até de um pouco do acaso. Não quero dizer que ela seja desorganizada ou não orientada. Sem uma estratégia consistente e consciente de busca da inovação, sem os recursos necessários, nada vai acontecer. A inovação deve ocorrer de forma deliberada.
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A tecnologia da informação traz uma contribuição estupenda para o tema em várias facetas. Antes das Startups, que ou são criativas ou não são nada, há um movimento que considero muito mais importante e interessante, no convívio entre caos e ordem, que é a criação dos chamados Softwares Livres. Em 1984, um funcionário dos laboratórios de inteligência artificial do MIT, Richard Stallman, deixou seu emprego para se dedicar ao projeto GNU. A grande novidade nesse projeto de software, é que ao contrário do que se fazia até então, todo o código era aberto e compartilhado com quem tivesse interesse. Qualquer pessoa poderia se utilizar livremente do produto e, muito mais importante, qualquer programador da face da terra poderia apresentar suas contribuições e ser coautor da obra. Nasceram as comunidades de software livre que, ao longo dos anos, produziram softwares de altíssima qualidade, modificando paradigmas consolidados e provocando constantemente os status quo das empresas tradicionais de software.
Abro um parêntese, antes de continuar, por responsabilidade para com as posições de liderança que já ocupei em entidades locais e nacionais de Tecnologia da Informação – TI , para esclarecer que, apesar de admirar e reconhecer as grandes contribuições dos Softwares Livres, nenhum país deveria ter como centro de sua estratégia de desenvolvimento do setor de TI tais iniciativas. Em especial, é vital para o Brasil incentivar a criação, o fortalecimento e a disseminação mundial de software brasileiro. A política de compra pública adotada em alguns governos que, ao invés de priorizar a nossa produção local, prestigia o software livre é, no meu ponto de vista, um grande desserviço à nação.
Voltando ao tema, cito outro feito notável, cujo resultado me utilizo com alguma frequência como referência, que é a criação da Wikipedia. Atualmente, a versão em inglês, possui mais de 6 milhões de artigos. Uma obra de arte feita por milhares de mentes de forma colaborativa. Retirei um dos trechos que comenta sobre a edição dos artigos, pela sua notoriedade, e grifei passagens que considero relevantes.
“Não tenha medo de editar artigos. Qualquer pessoa pode editar qualquer página da Wikipédia! Clique no separador Editar no topo da página que quer melhorar. Não é preciso credenciais especiais, nem registo prévio (ver abaixo). A edição é livre, mas com a liberdade vem a responsabilidade.”
Outra trajetória emblemática para o tema é a Lego. No final dos anos 90, a empresa vinha perdendo espaço e entrou em uma fase de prejuízos. Dois fatores reergueram a marca aos patamares atuais, a descoberta de que seu público alvo era também composto de adultos e a interação colaborativa e criativa com os seus clientes. Para se ter uma ideia, deve haver em torno de 80 LUG (clubes de usuários Lego) ao redor do mundo e, caso você seja um fã, pode sugerir brinquedos novos para a empresa. A inovação, além de colaborativa, vem de fora!
Setores mais tradicionais, como o de mineração, também já estão adotando estratégias similares. Se você souber manipular as informações disponíveis, incluindo imagens de satélite, e conseguir criar algoritmos que aumentem a probabilidade de se encontrar algum minério raro, você vai ficar rico. Claro que você pode optar por minerar bitcoins, ao invés disso.
Em essência, resumo minhas palavras a união de dois trechos do já mencionado livro do Dee Hock:
“O futuro não é feito de lógica e razão. É feito de imaginação, esperança e convicção.”
“A concordância contém a essência do que é diferente e do que é comum. Se não houver diferença, não há com o que concordar. Com a concordância, vem pelo menos algum grau de comunhão.”
*Jeovani Salomão é empresário do setor de TICs e ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional.