Aparentemente o princípio da ação e reação, preconizado pela terceira lei de Newton, funciona tão bem para forças quanto para ideias. Tenho feito inúmeras provocações sobre o futuro, as relações humanas e o avanço da tecnologia, motivo pelo qual tenho sido provocado a falar mais e mais sobre os temas.
Neste contexto, tive o privilégio de participar do evento ITK (Innovation Tech Knowledge) 2021 Digital, promovido pela Softsul, a convite do amigo Antonioni, presidente da entidade, o qual me fez, na palestra que ministrei no encerramento do evento, uma bateria de perguntas instigantes a respeito de ideias sobre as quais tenho escrito. A dose se repetiu dias depois com o jornalista Silvio Belbute no programa ITK TV News, onde também foi entrevistado o futurista e amigo Gilberto Lima.
A inteligência e perspicácia dos meus inquiridores colocaram uma pitada adicional de tempero na conversa, permitindo o surgimento de ramificações intrigantes de possibilidades e trazendo um aprendizado mútuo. Como tenho dito constantemente, adivinhar o futuro é algo bastante difícil, motivo pelo qual é importante detectar tendências e construir hipóteses viáveis. Debater baseado nesta premissa tem o potencial de trazer ganhos, mesmo que o porvir pretendido não venha a ocorrer conforme o imaginado.
Particularmente, a questão do metaverso ganhou um tom desafiador no evento. É natural que se questione se a vida neste novo universo será de fato uma vida, ou apenas uma fantasia, uma ilusão vazia. Saber o que vai de fato ocorrer nesta nova realidade, medir os impactos pessoais e na sociedade não é algo trivial, motivo pelo qual, apresentei um posicionamento considerando elementos de um cenário factível, que passo a enunciar antes de responder à questão. Trata-se de um futuro possível, viável, mas que não tem a obrigação de se realizar.
O primeiro aspecto relevante é o da produção, incluindo aqui energia, alimentos e bens de toda natureza. O aumento da automatização já avança hoje em diversos setores, em especial naquelas tarefas repetitivas. Em 2020, a China anunciou um aumento de 19,1% na construção de robôs industriais. Movimento similar ocorre nos EUA, onde empresas do Vale do Silício estão estruturando estratégias para que robôs cheguem a fábricas de pequeno e médio porte, por meio de aluguel. Em uma reportagem feita pela CNN, trata-se de um exemplo desta prática, onde a empresa Polar Hardware Manufacturing paga 10 dólares a hora por um braço mecânico, citando que o custo de um empregado humano seria o dobro.
A continuidade da tendência possui um potencial de reduzir a quantidade de pessoas empregadas nestes e em outros setores. Os drones podem extinguir entregadores humanos, os carros automáticos podem gerar uma dispensa generalizada de motoristas, assim como o avanço da Inteligência Artificial pode substituir programadores de software, além de outras profissões de cunho intelectual. Enfim, um cenário de desemprego de uma parcela significativa da população mundial.
Introduzindo um segundo fator, há que se considerar uma perspectiva histórica. Para as classes dominantes, uma grande população de pessoas marginalizadas é sempre um risco. Uma insatisfação canalizada por muitos pode levar à revolta, desordem e ruptura do status quo. Foi assim que nasceu a política do pão e circo (Panem et circenses) em Roma. Com a ascensão do Império, o enriquecimento e o crescimento da cidade houve uma migração natural de pessoas de todas as classes sociais para a metrópole. As mariposas voando na direção da luz. Para apaziguar a população e afastar o pensamento crítico dos problemas estruturais do sistema, os imperadores distribuíam gratuitamente alimentos (pão e trigo), além de promover espetáculos de livre acesso. Quem quer tratar de política ou desigualdades sociais quando está saciado e se divertindo para valer?
Pensadores do mundo inteiro têm debatido sobre o conceito de Renda Mínima Universal, que se constitui em um pagamento, dado independente de qualquer condição específica ou ato relacionado vinculante, para cada cidadão. Evidentemente a ideia tem méritos e poder vir a ser adotada, mas há que se refletir sobre a combinação dela com a expansão do metaverso, perfeitamente possível com a ampliação da conectividade e com a popularização de dispositivos de interface, como óculos 3D.
Imagine bilhões de pessoas devidamente alimentadas, conectadas em um ambiente virtual, representadas por seus maravilhosos avatares e vivendo aventuras extraordinárias. Conhecendo o mundo inteiro e muitos outros imaginários, interagindo com pessoas de diferentes idades, culturas e linguagens. A solidificação dos estratos sociais, especialmente daqueles constituídos pelos mais pobres, seria inevitável, pelo menos se tratando do mundo real.
Por outro lado, o universo virtual oferece oportunidades incríveis e possui amplo potencial democrático. Quando a riqueza provém da produção de commodities, como o petróleo e demais minérios, por exemplo, a chance de alguém ascender socialmente é muito baixa. Nestes contextos, em que a barreira de entrada é muito alta e os recurso limitados, poucos privilegiados detém a maior parte da riqueza e normalmente a repassam para seus descendentes. Ao contrário, em uma situação na qual as ideias, a imaginação e a criatividade são valiosas, cria-se um ambiente bem mais dinâmico, cuja capacidade de oferecer desafios e prosperidade é praticamente ilimitada.
Na caminhada para um mundo mais virtual, com Renda Mínima Universal e com a maioria da população sem emprego, várias questões filosóficas precisam ser amplamente debatidas. Será que a vida daqueles que estão dentro do metaverso, inseridos ou não política de pão e circo, é vida? É justa? É melhor que a atual, onde quase 1 bilhão de habitantes passam fome? Proporciona desafios que preenchem a existência, mesmo dentro de um ambiente ficcional? E se alguém estiver conectado 100% do tempo, seria escravo ou viciado virtual? Requereriam intervenção do estado? É possível gerar prosperidade, felicidade e plenitude exclusivamente digital?
A única resposta simples é que a necessidade do debate é iminente. Alguns pontos, no entanto, já se formam como convicção para mim. Por óbvio, precisamos, enquanto sociedade, encontrar caminhos para que o avanço da tecnologia beneficie a humanidade, gerando mais equidade, sendo mais inclusiva, levando saúde, educação e segurança física, alimentar e psicológica para mais pessoas. Além disso, é vital que cada indivíduo tenha escolhas. Ninguém pode ser obrigado a viver dentro ou fora do metaverso. Nenhuma empresa, organização ou governo deve ser dominante, a ponto de controlar o universo virtual. Por fim, a combinação de realidade, realidade aumentada e virtual deve ser feita na medida certa para cada um, dentro da sua própria liberdade de opção.
*Jeovani Salomão é fundador e presidente do Conselho de Administração da Memora Processos SA, Membro do conselho na Oraex Cloud Consulting, ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional e escritor do Livro “O Futuro é analógico”.