Em um cenário ficcional, de um futuro dominado pelos romanos, ocorre a detecção da chegada de uma nave alienígena em nosso sistema solar. Surge a necessidade de compreender o objetivo dos potenciais invasores, se vieram em missão exploratória ou em guerra. Inicia-se uma mobilização para tentativas de comunicação, que obtém seus primeiros sucessos por meio da matemática. Toda a Teoria dos Números é construída sobre poucas e simples regras, os chamados Axiomas de Peano. Na mesma linha, a compreensão de operações simples de aritmética permite gradativamente construir uma base para a criação de uma linguagem comum de entendimento. No conto, que infelizmente, em função de tão longínqua leitura sequer me lembro do autor, os extraterrestres interrompem a comunicação e abandonam a terra assim que descobrem que a prática de escravidão nunca fora abolida. O autor, de forma engenhosa, conta a história do principal linguista envolvido nas comunicações, que teve que interromper seus trabalhos em um conto, cujo tema central era sobre um ser iluminado que, cerca de dois mil anos atrás, seria mártir do estado romano, mas acabou sendo abolido por alguma razão.
Recentemente, vi o filme “A Chegada”, baseado no conto “História de sua Vida”, de Ted Chiang, que tive o prazer de ler. Mais uma vez, a temática da chegada de alienígenas e a comunicação com eles se repete. A linguagem está de novo no centro do enredo, modificando profundamente a compreensão da própria existência. Recomendo o filme e o livro.
Nos casos mencionados de ficção, há o reconhecimento da necessidade de mobilização para que se estabeleça uma linguagem comum que permita a comunicação. Por óbvio, quando não se fala o mesmo idioma e é preciso se relacionar, algo precisa ser feito.
Vivemos um momento em que um dos jargões mais utilizados corporativamente é a “Transformação Digital”. Curiosamente, a maior parte das definições sobre o que venha a ser isso, começa assim: “Transformação Digital é um processo…”. Se você conhece um pouco sobre o que é processo, vai concordar comigo que essa não é uma definição adequada. Não se faz transformação digital de forma contínua e repetida, que são características dos processos. As consequências sim geram novos processos de trabalho e gestão.
Transformação Digital é um projeto que deve envolver a organização como um todo, partindo do propósito, passando pela estratégia e modificando o jeito de fazer. A tecnologia passa a ter papel central nas decisões, mas não deve, de forma alguma, retirar o ser humano da equação.
Apesar de falarmos a mesma língua natal, coisa de que duvido tão somente quando escuto os meus filhos adolescentes conversando com seus amigos, a comunicação empresarial é repleta de gargalos. Particularmente, aqueles que viemos do mundo da tecnologia, adoramos criar um linguajar próprio repleto de siglas e termos, com anglicismos em abundância, que apenas nós entendemos. Há a compreensão que a linguagem gera poder e status. Quanto mais palavras e siglas estranhas conseguirmos produzir, mais seremos respeitados e idolatrados. Grande bobagem.
As organizações vivem, ou deveriam, para buscar constantemente seus propósitos. Esses, por sua vez, são, ou deveriam, ser nobres e com responsabilidade social. As áreas de negócio finalísticas, portanto, são a essência da organização. A tecnologia é meio, suporte para se atingir algum objetivo. É certo, que na economia digital, a tecnologia é parte integrante das áreas fins, mas nem tudo (ainda) é economia digital.
Nesse contexto, é fundamental reconhecer a necessidade de se criar um linguajar comum na organização, de forma que se possa utilizar adequadamente os avanços tecnológicos, que hora promovem ganhos incrementais, mas em outros momentos podem ser disruptivos. Por exemplo, uma estratégia de comércio eletrônico efetiva pode modificar o foco do atendimento presencial para um foco em distribuição. Uma digitalização de serviços públicos, pode permitir ao cidadão uma interação muito mais plena com o Estado, do que aquela que recebe indo de órgão a órgão para resolver um problema que deveria estar interligado e unificado.
Na concepção da minha principal iniciativa empresarial, já havia reconhecido esse desafio, motivo pelo qual tive a certeza de que não poderia falar “tecniquês” com os clientes. Havia que encontrar um caminho que permitisse uma comunicação efetiva e que garantisse que os investimentos efetuados realmente produzissem valor. Precisava convergir a área de negócios, a gestão, com a tecnologia. Era fundamental encontrar uma linguagem poderosa que fosse reconhecida por ambos. Há época pensei que existisse uma, hoje, acredito que são duas.
A chave para essa convergência que adotamos desde o início foi a Gestão de Processos de Negócio (BPM). Tanto o contexto da tecnologia da informação quanto o contexto do negócio, reconhecem que a efetividade dos produtos e serviços oferecidos aos clientes dependem de um fluxo de trabalho estável, com pontos de decisão bem definidos, com responsabilidades claras. As organizações não podem ser erráticas, precisam apresentar um padrão de comportamento previsível, tanto para seus clientes quanto para seus colaboradores.
A segunda linguagem, que viemos descobrindo ao longo do caminho na prestação dos serviços, é a dos componentes estratégicos. Missão, visão, valores, propósito e depois, bem depois, a estratégia em si. A razão de existir de uma corporação tem uma força extraordinária, capaz de mover pessoas diferentes para um objetivo comum e necessariamente precisa nortear os processos organizacionais. Sendo assim, caso você esteja ávido por Transformação Digital, ao invés de pesquisar as mais diversas opções tecnológicas disponíveis, cuide primeiro de encontrar um linguajar comum, de preferência orientado pelos componentes estratégicos e processos.
*Jeovani Salomão é empresário do setor de TICs e ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional.